Iniciativa Culatra 2030 está a ajudar uma pequena comunidade a lutar contra as alterações climáticas e a promover as renováveis.
26 ago 2022 min de leitura

A energia e a seca estão na ordem do dia. Com os preços do gás e da eletricidade a escalar por causa da Guerra da Rússia e da inflação, com efeitos negativos na economia dos países e no bolso dos consumidores, e as temperaturas altas, com pouca chuva, as energias renováveis ganham um papel de destaque. E em Portugal estão já a ser desenvolvidos projetos de comunidades de energias renováveis que merecem ser conhecidos. Foi a sul do país que, esta vez, encontrámos na Ilha da Culatra, no Algarve, uma comunidade com um sentido comunitário vincado, numa iniciativa que envolve toda a sua população e que tem dado que falar por fazer a diferença no território nacional na área da sustentabiliade.

Situada no coração da Ria Formosa, uma das Sete Maravilhas Naturais de Portugal, a Ilha da Culatra está a fazer de tudo para ter consumos mínimos de energia e para ser auto-sustentável até 2030. Pode parecer tarefa complicada, mas graças ao empenho de uma equipa de investigação da UAlg - Universidade do Algarve, a transição para as energias limpas é um objetivo cada vez mais próximo.

O investigador da Universidade do Algarve, André Pacheco, um dos nomes por detrás da iniciativa Culatra 2030 - Comunidade Energética Sustentável, falou com o idealista/news, revelando como funciona o aproveitamento da energia solar e eólica nesta ilha de Olhão, detalhando o que está a ser feito para consolidação de uma comunidade mais autêntica.

"Os benefícios são óbvios: segurança energética, redução de custos e aumento das poupanças e sustentabilidade ambiental dos territórios", resume o responsável em entrevista.

Culatra 2030: em que consiste esta iniciativa sustentável?

Como comunidade de energia sustentável, a população da Ilha da Culatra mostra-se mais preocupada com o planeta e, pouco a pouco, fomenta em si mesma um modelo de economia circular fechado que só lhe traz benefícios. Na prática, há primeiro que eliminar a presença de plásticos, minimizar a utilização de matérias fósseis e atuar perante as perdas desnecessárias de energia, para dar depois uma nova vida à ilha.

“A visão da Culatra 2030 é criar, na vila de pescadores da Culatra, em pleno Parque Natural da Ria Formosa, uma comunidade de energia renovável através de uma intervenção integrada no modelo de gestão energética, gestão de resíduos, gestão da água e criação de novos mecanismos de responsabilidade social”

Com as alterações dos padrões de consumo e com os desafios ambientais resolvidos, os culatrenses passarão a viver num lugar único, com condições de vida privilegiadas em termos energéticos, mas que jamais esquece a sua identidade cultural, apenas a readapta aos desafios do presente.

Mas a iniciativa não quer ficar por aqui. A Culatra 2030 é apenas o começo de uma viagem, na procura de comunidades energéticas sustentáveis em Portugal que sejam capazes de gerar e consumir eletricidade de maneira descentralizada. O representante da Universidade do Algarve, André Pacheco diz-nos que qualquer comunidade pode fazê-lo bastando apenas, ter determinação.

 

painéis fotovoltaicos na Culatra
Culatra2030
Como nasceu a iniciativa Culatra 2030 - Comunidade Energética Sustentável?

 

No início de 2019 a Universidade do Algarve, em colaboração com a AMIC - Associação de Moradores da Ilha da Culatra, submeteu uma proposta ao Secretariado Europeu das Ilhas da União Europeia. A Culatra foi então selecionada como uma das 6 ilhas piloto para desenhar uma agenda de transição energética. O projeto foi apresentado às comunidades da ilha no Polidesportivo do Clube União Culatrense a 24 de março de 2019.

No dia 27, assinou-se, finalmente, o Memorando de Entendimento entre o Secretariado Europeu das Ilhas da UE, a Universidade do Algarve, a Associação de Moradores da Ilha da Culatra, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região do Algarve e a Câmara Municipal de Faro.

"Até agora foi possível financiar a instalação de 20% das necessidades médias de energia na ilha"

 

Como foi financiado o projeto? Conta com algum tipo de apoio?

Um grande desafio do Culatra 2030 continua a ser a aquisição integrada de financiamento. A iniciativa assenta num modelo de parceria em hélice quádrupla, reunindo a Autoridade Regional do Algarve, a Universidade do Algarve, algumas autarquias, várias empresas fornecedoras de soluções tecnológicas, bem como associações da ilha.

Isto permite uma enorme flexibilidade no concurso a diferentes fontes de financiamento e, até ao momento, o projeto foi abrangido por programas regionais, nacionais e europeus.

Quais são os objetivos da iniciativa Culatra 2030 que já foram atingidos e quais faltam cumprir?

A visão da Culatra 2030 é criar, na vila de pescadores da Culatra, em pleno Parque Natural da Ria Formosa, uma Comunidade de Energia Renovável através de uma intervenção integrada no modelo de gestão energética, gestão de resíduos, gestão da água e criação de novos mecanismos de responsabilidade social.

Até agora foi possível financiar a instalação de 20% das necessidades médias de energia na ilha, através da aquisição de um barco electro-solar para atividades de aquicultura e também de uma estação de dessalinização fotovoltaica, da recuperação de um edifício comunitário, instalação redutores de caudais em edifícios públicos e compositores comunitários.

Além disso, tem sido realizado o financiamento de ações de capacitação da comunidade para as questões de energia, água, resíduos, pobreza energética e economia circular. Isto para falar do que é mais visível, mas estão em curso outras ideias.

"Queremos que o futuro passe por integrar a Comunidade de Energia Renovável da Culatra numa Cooperativa que defenda a sustentabilidade e a identidade da ilha"

 

Era importante o reconhecimento da Ilha da Culatra como núcleo residencial piscatório para potencializar as energias renováveis?

O Governo concedeu um estatuto legal para esta comunidade ocupar o Domínio Público Marítimo, o que significa que os habitantes receberão concessões de uso da terra para os próximos 30 anos e poderão legalizar as suas moradias. Essas concessões podem ser renovadas se a família comprovar o vínculo com as atividades pesqueiras, fator primordial para a defesa da sua identidade.

 

comunidade energética renovável
Culatra 2030
Portanto, é absolutamente essencial que esta comunidade tenha a sua licença de ocupação para poder legalizar a sua habitação e tratar do seu futuro. Queremos que o futuro passe por integrar a Comunidade de Energia Renovável da Culatra numa cooperativa que defenda a sustentabilidade e a cultura da ilha.

 

O que ganham as 400 famílias de pescadores da Ilha da Culatra com a introdução de técnicas em prol da sustentabilidade?

A criação de uma comunidade de energia renovável permitirá cativar na ilha parte dos lucros que ganham as operadoras de rede com a venda e distribuição de energia, dinheiro que poderá ser investido no aumento da capacidade de geração. Passam assim a haver descontos diretos nas faturas de eletricidade, que aumentam quanto maior for a capacidade de produção. Brevemente será criada uma cooperativa para o desenvolvimento sustentável da Ilha da Culatra, a Culatra Coop, formada exclusivamente por culatrenses.

A cooperativa estará responsável por decidir o futuro da Culatra de forma articulada com as associações existentes, em relação aos investimentos na geração de energia e na forma como decide combater a desigualdade ou melhorar condições de vida. No fundo, irá capacitar a comunidade para ter meios económicos e autonomia suficiente para decidir o seu futuro, preservando a sua identidade.

As comunidades energéticas podem criar um sistema descentralizado de produção de energia. Quais são as vantagens desta descentralização no ponto de vista nacional? E do ponto de vista europeu?

Os benefícios são óbvios: segurança energética, redução de custos e aumento das poupanças e sustentabilidade ambiental dos territórios. Foi essa a base de criação do Pacto Ecológico Europeu, empoderar as comunidades locais e capacitá-las a produzir e distribuir localmente um recurso energético existente, proveniente do sol, do vento, das marés ou da biomassa.

A questão é que qualquer comunidade pode fazê-lo. Se no início as poupanças podem não parecer significativas, só têm margem para crescer. É um passo fundamental para uma economia descarbonizada e para o combate às alterações climáticas.

"Será possível implementar novas formas de gestão de consumo, que permitam controlar o consumo dos eletrodomésticos e painéis fotovoltaicos dos membros da comunidade de energia renovável"

 

Em que fase se encontram atualmente no desenvolvimento das comunidades energéticas na Ilha da Culatra?

Neste momento estamos a dar os passos para criar a Culatra Coop, a Cooperativa para o Desenvolvimento Sustentável da Culatra, que basicamente será a entidade gestora do autoconsumo coletivo da ilha. Submetemos também à Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) uma candidatura a um projeto piloto. Se for aprovada podemos testar durante 1 ano a viabilidade técnica e económica da Comunidade de Energia Renovável da Culatra, e usar os resultados para propor alterações ao regulamento do autoconsumo coletivo que potenciem o sucesso da iniciativa.

 

instalação de painéis fotovoltaicos
Culatra 2030
Será possível implementar novas formas de gestão de consumo, que permitam controlar o consumo dos eletrodomésticos e painéis fotovoltaicos dos membros da comunidade. Podemos também implementar um modelo de economia participativa, que permita a distribuição de custos e proveitos da geração renovável, e que suporte o envolvimento da comunidade e o investimento em novos equipamentos.

 

De que forma o desenvolvimento de uma comunidade de energias renováveis na Culatra ajuda a aproximar as gerações mais jovens da necessidade de cuidarmos do nosso planeta?

As questões da sustentabilidade dizem sobretudo respeito ao consumo energético desenfreado, nomeadamente com recurso a fontes não renováveis. A Cooperativa para o Desenvolvimento Sustentável da Ilha da Culatra tem como objetivo social a proteção, a conservação, a promoção e o desenvolvimento sustentável das comunidades da ilha, nomeadamente do núcleo piscatório nas suas vertentes social, económica, cultural e ambiental.

Alicerçar um projeto de Comunidade de Energia Renovável numa Cooperativa para o Desenvolvimento Sustentável da Ilha da Culatra, permitirá capacitar a comunidade de meios próprios para se desenvolver, para criar emprego e promover a coesão social. E sobretudo, investir num dos principais setores da ilha, a economia do mar.

"A Culatra é hoje reconhecida como um lugar que está em constante mutação e a transformar-se para melhor. É um laboratório vivo, o que traz orgulho aos culatrenses"

 

Como é que compara a Culatra antes da iniciativa e a Culatra deste momento?

A Culatra enfrenta desafios específicos em termos de eficiência energética e autossuficiência, escassez de água, gestão de resíduos e poluição localizada. Dado que a energia representa cerca de 50% das despesas das famílias na ilha, a pobreza energética é outro desafio importante. A Culatra tem um longo passado de reivindicação por melhores condições de vida. Um histórico de união e de luta. Penso que o projeto Culatra 2030 trouxe mais suporte e conhecimento, ao despertar a comunidade para novos desafios.

 

comunidade Ilha da Culatra
Culatra 2030
A Culatra é hoje reconhecida como um lugar que está em constante mutação e a transformar-se para melhor. É um laboratório vivo, o que traz orgulho aos culatrenses. Esse orgulho, que é a sua luta e a sua identidade, mantém vivo o espírito comunitário. Em certa medida, nós estamos a alimentar a chama e estes desafios só são possíveis se mantivermos a comunidade unida e a remarmos todos na mesma direção.

 

A iniciativa é capaz de cobrir as necessidades dos pescadores da Culatra. Em termos práticos, como é que isso é feito?

Um dos primeiros projetos que tivemos financiado pelo programa Mar2020 foi o da Descarbonização da Atividade de Aquicultura. O projeto tem como objetivo valorizar e promover a aquicultura da Ilha da Culatra, assegurando a futura sustentabilidade económica, social e ambiental da atividade.

Conseguimos instalar uma central de geração fotovoltaica de 60 kWp; adquirir uma unidade de armazenamento de energia, com uma capacidade de 32 kWh, a ser utilizada para funcionamento do equipamento para o fabrico e silagem de gelo sem custos energéticos para os pescadores, viveiristas e mariscadores. Estamos ainda a colocar os painéis fotovoltaicos nos edifícios públicos. Na verdade, prevemos instalar mais 30 kWp até ao final do ano.

A ostricultura é outra atividade em franca expansão dentro da comunidade mais jovem da Culatra. Criamos condições futuras de trabalho comunitário e potencial para alicerçar a marca da Ostra da Culatra à sustentabilidade da Ria Formosa.

O que esperam alcançar em 2030, 2040 ou até mesmo 2050?

Uma comunidade que seja exemplo para o país. Capaz de se adaptar, resiliente, mas que mantenha a sua identidade. Uma comunidade que conheça os seus direitos, mas também os seus deveres, nomeadamente o de viver em equilíbrio com o meio, salvaguardando os seus recursos.

Acha que a iniciativa Culatra 2030 poderá expandir-se para outras zonas do país que querem fomentar as comunidades de energia sustentável?

A chave do sucesso é a participação ativa de toda a comunidade da ilha. Começámos por reunir entidades públicas, empresas e comunidades. Seguiram-se as oportunidades de financiamento que asseguraram a transição energética e que são continuamente exploradas. Acreditamos que não existem segredos e que este modelo pode ser facilmente repercutido por qualquer comunidade.

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