Imobiliário em 2023: "É um mercado em mudança que exige adaptação"

Entrevista a Gonçalo Nascimento Rodrigues, coordenador da pós-graduação em Real Estate Investments do Iscte Executive Education.
19 jun 2023 min de leitura

Será 2023 um ano de incertezas no setor imobiliário, nomeadamente no segmento residencial? “Prefiro falar em adaptação. Adaptação a um mercado com menos vendedores e menos compradores, com transações mais lentas e, em alguns casos, necessidade de revisão do preço”, analisa Gonçalo Nascimento Rodrigues, em entrevista ao idealista/news. O coordenador da pós-graduação em Real Estate Investments do Iscte Executive Education considera que o mercado está a passar por “uma mudança que exige adaptação”, mas lembra que “em todas as fases dos ciclos do mercado imobiliário é boa altura para comprar habitação própria e permanente”.

Numa altura em que o Banco Central Europeu (BCE) voltou a subir as taxas de juro diretoras em 25 pontos base, Gonçalo Nascimento Rodrigues deixa um aviso a quem está a pensar comprar casa: "(...) Deve ter noção que o vai fazer num momento de alta de taxas de juro e que as mesmas se deverão manter ainda durante algum tempo; quem tem crédito habitação, deverá olhar para um horizonte mais alargado e procurar acomodar prestações mais elevadas no orçamento familiar (...)".

O especialista em imobiliário dá ainda a sua visão sobre o Programa Mais Habitação do Governo, considerando que algumas das medidas previstas "poderão ter efeito", sendo que este "será sempre muito reduzido e contido no seu alcance, face às atuais necessidades do mercado".

Estes são alguns dos temas abordados por Gonçalo Nascimento Rodrigues na entrevista concedida ao idealista/news, que pode ser lida em baixo na íntegra. Na mesma fala, por exemplo, sobre a necessidade de aumentar a oferta de casas em Portugal, nomeadamente para a classe média – “(…) A disponibilização de nova oferta (…) será, no mínimo, desafiante nos próximos anos” –, e sobre a importância de apostar no Build to Rent (BtR): “O mercado imobiliário português reúne as condições adequadas para atrair ainda mais investimento, sobretudo em BtR e logística. No BtR falta algum racional económico e condições fiscais e de licenciamento mais atrativas”.

Oferta de casas em Portugal
Gonçalo Nascimento Rodrigues, numa entrevista ao idealista/news concedida em 2019Ana Luzia Delgado


Inflação alta, juros a subir, custos de construção a aumentar, poder de compra a diminuir. Fala-se que 2023 será um ano de incertezas no setor imobiliário, nomeadamente no segmento residencial. Partilha desta ideia? 

Incerteza não será a palavra mais adequada. Prefiro falar em adaptação. Adaptação a um mercado com menos vendedores e compradores, com transações mais lentas e, em alguns casos, necessidade de revisão do preço.

"[2023 será um ano de] adaptação a um mercado com menos vendedores e compradores, com transações mais lentas e, em alguns casos, necessidade de revisão do preço"

É um mercado mais virado para a componente do crédito e da sua renegociação do que propriamente de novas transações e novos créditos. É um mercado mais desafiante para os investidores que procurarão adequar os objetivos de rentabilidade num contexto de taxas de juro mais elevadas e condições de financiamento mais adversas. É, por isso, um mercado em mudança que exige adaptação. Procurando compreender essa mudança, mais rapidamente cada um se conseguirá adaptar e não viver na mencionada incerteza.

Comprar ou arrendar casa no contexto atual? Esta é uma dúvida que ainda se coloca? Porquê?  

É natural que a dúvida se coloque, perante o atual nível de taxas de juro, que afasta potenciais compradores de habitação própria e permanente que necessitam de crédito. No entanto, o mercado de arrendamento também apresenta fortes condicionantes: baixo volume de oferta e rendas elevadas.

Isto dificulta o acesso à habitação, principalmente da parte de jovens/’first-time buyers’ que perante um mercado com preços em máximos históricos, quer na compra, quer no arrendamento, e condições de financiamento desafiantes, se veem com maiores dificuldades em conseguir ter uma habitação.

É uma boa altura para comprar casa, seja para viver, seja para arrendar? E para vender, é um momento adequado?

Em todas as fases dos ciclos do mercado imobiliário é boa altura para comprar habitação própria e permanente. Estas decisões – ao contrário das decisões puras de investimento – são mais “imunes” aos ciclos, uma vez que havendo necessidade, há motivação na compra. Por outro lado, a compra de habitação própria e permanente é – ou pelo menos deveria ser – uma decisão de médio/longo prazo. No longo prazo, a história já nos mostrou que o imobiliário tende a valorizar, pelo que a compra, nestes casos, deve ser mais independente da mera questão do preço.

"Em todas as fases dos ciclos do mercado imobiliário é boa altura para comprar habitação própria e permanente"

Quanto à opção de arrendamento, prende-se mais com decisões de curto prazo e o preço torna-se uma questão mais importante. Ora, num mercado onde as rendas estão bastante elevadas e com pouca oferta, o arrendamento torna-se uma decisão mais difícil. No entanto, perante tão pouca oferta e face aos condicionalismos de acesso a crédito, por enquanto parece haver procura suficiente para que não vejamos uma quebra das rendas no curto prazo.

No que respeita à venda, é necessário avaliar a motivação da mesma e o momento da compra. 

  • Se for por desejo de realizar mais-valias, ainda parece ser um bom momento uma vez que os preços (ainda) se mantêm elevados; 
  • Se for por necessidade de troca de casa, há que avaliar muito bem o que se pretende comprar, quanto se pode pedir de crédito e aferir se o valor da venda é suficiente para colmatar o ‘equity’ que será necessário aportar na futura compra; 
  • Se for por motivos mais financeiros, de dificuldade de pagamento da prestação bancária, este momento ainda me parece adequado. 

O montante de crédito vencido encontra-se em mínimos históricos, os preços mantêm-se elevados e poderá ainda ser possível ao mutuário vender a sua casa, liquidar integralmente o seu crédito e ainda manter algum equity para uma futura compra mais dentro das suas possibilidades financeiras.

Comprar e arrendar casa em Portugal
Foto de Masood Aslami on Pexels


Como antecipa o comportamento dos preços das casas em Portugal, de uma forma geral, e nos principais centros urbanos?

Desde 2022 que tenho procurado explicar, quer nas aulas no ISCTE Executive Education, como em palestras que dou, o que poderá acontecer ao mercado residencial em Portugal neste período pós-pandemia e num contexto de guerra.

Histórica e estatisticamente, existe uma correlação elevada entre crédito e habitação em Portugal. Se as taxas de juro descem, a compra de habitação (e respetivo preço) sobem. Se a disponibilidade de crédito aumenta, o mesmo acontece.

O que temos visto nos últimos meses é, fundamentalmente, um esforço da parte da banca em renegociar alguns contratos de crédito habitação. Os dados oficiais mostram ainda uma desaceleração no número de avaliações bancárias e no número de transações de casas. No entanto, esta desaceleração no mercado não está ainda a provocar efeitos nos preços. Porquê? Fundamentalmente pelo baixo nível de oferta para a procura que existe e pela natureza do próprio mercado, em reagir lentamente a estímulos externos.

"Os dados oficiais mostram ainda uma desaceleração no número de avaliações bancárias e no número de transações de casas. No entanto, esta desaceleração no mercado não está ainda a provocar efeitos nos preços. Porquê? Fundamentalmente pelo baixo nível de oferta para a procura que existe e pela natureza do próprio mercado, em reagir lentamente a estímulos externos"

Desta forma, o que antecipava desde 2022, aparentemente está a concretizar-se e não antevejo grandes quebras de preços no curto prazo. Para tal, será necessário um aumento da oferta que na prática só me parece que possa existir em maior volume decorrente de mutuários que tenham de vender as suas casas por incapacidade de cumprimento no pagamento das prestações bancárias.

E a nível das taxas de juro e da oferta de crédito, o que podem esperar as famílias e os investidores?

Parece claro que o movimento de subida das taxas de juro ainda não terminou, apesar de parecer estar a chegar ao fim. No entanto, não antevejo quebras futuras. As economias europeia e mundial teriam de entrar em recessão para que os bancos centrais revissem a sua política monetária, voltando a um ‘quantitative easing’. No momento, não são esses os sinais. O mercado não espera uma recessão (quando muito, uma estagnação ou baixo crescimento económico) nem os bancos centrais têm dado indicações de virem a terminar tão cedo o seu ‘quantative tightening’.

"Parece claro que o movimento de subida das taxas de juro ainda não terminou, apesar de parecer estar a chegar ao fim. (...) Quem quer comprar casa deve ter noção que o vai fazer num momento de alta de taxas de juro e que as mesmas se deverão manter ainda durante algum tempo"

Desta forma, quem quer comprar casa deve ter noção que o vai fazer num momento de alta de taxas de juro e que as mesmas se deverão manter ainda durante algum tempo; quem tem crédito habitação, deverá olhar para um horizonte mais alargado e procurar acomodar prestações mais elevadas no orçamento familiar; quem quer investir, deverá ter noção que as condições de financiamento são, e continuarão a ser, mais adversas e que os investimentos deverão ser realizados com maior volume de capital próprio.

Muito se tem falado da necessidade de aumentar a oferta de casas em Portugal, nomeadamente para a classe média portuguesa. Isto é possível? Como?

Parece-me um objetivo difícil de cumprir. Disponibilizar nova oferta no mercado é, tipicamente, um processo moroso. Por outro lado, atualmente é caro derivado dos elevados custos de construção. Seja pela questão do tempo, seja pela questão do custo, a disponibilização de nova oferta para a chamada classe média será, no mínimo, desafiante nos próximos anos.

Os últimos anos, marcados pela pandemia e, agora, pela guerra, e o contexto macroeconómico e financeiro deixaram ou estão a deixar marcas no setor imobiliário residencial? O que mudou ou está a mudar em termos de procura e oferta? 

As marcas parecem-me mais que visíveis: transações e preços em máximos históricos. Essas são as marcas que ficam. O que me parece importante, e que muitas vezes é mal feito, é o diagnóstico, a razão pela qual em anos tão adversos o mercado teve um comportamento tão expansionista.

Durante a pandemia, a procura, quer nacional como estrangeira, tornou-se muito mais elástica. Mais pessoas a comprar, mais pessoas a arrendar. Num mercado com pouca oferta (para tanta procura) e condições altamente atrativas ao financiamento, naturalmente não é de estranhar o comportamento que teve.

"Disponibilizar nova oferta no mercado é, tipicamente, um processo moroso. Por outro lado, atualmente é caro derivado dos elevados custos de construção. Seja pela questão do tempo, seja pela questão do custo, a disponibilização de nova oferta para a chamada classe média será, no mínimo, desafiante nos próximos anos"

A oferta procurou reagir: para o comprador nacional de primeira habitação, um incremento dos investimentos em ‘house flipping’; para o comprador estrangeiro e nacional de segmento mais alto, construções novas em novas localizações e com características diferenciadas – varandas, espaços exteriores, condomínios, qualidade construtiva, acessibilidades, novas disposições do espaço interior.

Casas à venda no Porto
Foto de Egor Kunovsky on Pexels


Portugal continua a ser um bom destino para se investir em imobiliário, apesar do momento mais complicado que se vive e do fim de medidas como os vistos gold?

Quase todas as características que o país tinha, que eram “convidativas” ao investimento estrangeiro em imobiliário, mantém-nas: segurança, clima, estabilidade, custo de vida. Outras, porventura, tê-las-á perdido, nomeadamente, a confiança junto dos atores políticos. Isto afasta investidores ou, pelo menos, leva-os a repensar as suas decisões de investimento.

O investidor sabe e consegue gerir momentos de mercado mais desafiantes, como é aquele em que vivemos: taxas de juro elevadas, inflação elevada, clima económico algo incerto, numa fase altamente expansionista do mercado imobiliário.

Aquilo que o investidor tem mais dificuldade em gerir é alterações de mercado ad-hoc e inesperadas levadas a cabo pelo poder político. Existe – ou pelo menos deveria existir – um certo relacionamento assente na confiança entre quem investe e quem decide. Temo que essa confiança possa ter sido um pouco abalada.

"Quase todas as características que o país tinha, que eram 'convidativas' ao investimento estrangeiro em imobiliário, mantém-nas: segurança, clima, estabilidade, custo de vida. Outras, porventura, tê-las-á perdido, nomeadamente, a confiança junto dos atores políticos. Isto afasta investidores ou, pelo menos, leva-os a repensar as suas decisões de investimento"

Nem sequer me refiro, em específico, à questão dos Golden Visa, até porque me parece que o mercado, de certa forma, já esperava alterações substanciais ao programa. Falo fundamentalmente da forma, do timing e da desadequação das medidas propostas à realidade do mercado.

O mercado imobiliário português reúne as condições adequadas para atrair ainda mais investimento, sobretudo em Built-to-Rent (BtR) e Logística. No BtR falta algum racional económico e condições fiscais e de licenciamento mais atrativas.

De forma resumida, que opinião lhe merece o programa Mais Habitação e a estratégia do Governo para o setor imobiliário?

Sendo o ativo imobiliário um ativo de investimento de longo prazo, num mercado onde normalmente qualquer ação política tem efeito a médio/longo prazo, qualquer estratégia a desenvolver deveria assentar em pilares fortes, sempre perspetivando o futuro. Aquilo que me parece é que a maior parte das propostas – senão mesmo todas – estão focadas no curto prazo. É muito difícil – para não dizer impossível – resolver as questões estruturais do mercado imobiliário num curto prazo.

Por outro lado, fico na dúvida de quais são realmente os objetivos do Governo. Não me parece que esteja claro. Aumentar oferta ou melhorar a acessibilidade na habitação? Controlar preços ou desenvolver políticas que potenciem a melhoria da acessibilidade na habitação? Auxiliar agregados familiares em dificuldades no pagamento das suas prestações bancárias ou rendas, ou impor condições a bancos e proprietários de casas para arrendamento?

"O mercado imobiliário português reúne as condições adequadas para atrair ainda mais investimento, sobretudo em Built-to-Rent (BtR) e logística. No BtR falta algum racional económico e condições fiscais e de licenciamento mais atrativas"

Dito isto, fico de facto na dúvida se há realmente alguma estratégia. Parece-me mais haver um conjunto disperso de medidas, mas não vejo uma estratégia de longo prazo. Algumas dessas medidas poderão ter efeito, mas este será sempre muito reduzido e contido no seu alcance, face às atuais necessidades do mercado.

No livro do ISCTE Executive Education “67 Vozes por Portugal” tive oportunidade de elencar as medidas que me pareciam absolutamente fundamentais para conseguirmos ter um verdadeiro mercado de arrendamento residencial em Portugal, como instrumento de melhoria da acessibilidade na habitação, nomeadamente: pacto legislativo e fiscal de longo prazo; “choque fiscal” no arrendamento; criação de veículos de investimento adequados; subsídios ao arrendamento.

O programa Mais Habitação tem muito pouco disto, e o que tem não tem o alcance necessário.

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